Nos últimos anos, a violência doméstica no Brasil tem sido uma questão de destaque com o aumento significativo nos registros de casos no Judiciário. Não se tratam apenas de pedidos de medidas protetivas ou ações penais, em que a figura da vítima é secundarizada pelo órgão acusatório e fica delegada a apenas como elemento de prova, mas, sobretudo, ações de múltiplos aspectos, em que o mérito da controvérsia depende de compreender o contexto de violência gerador de outros direitos.
São ações que vão desde reparação de danos morais, anulações de contratos, pedidos de auxílios previdenciários e, notoriamente, ações de família, onde entender o motivo da contenda e julgar o mérito perpassa, necessariamente, pela análise e reconhecimento da condição vivida por uma das partes enquanto vítima de uma violência em decorrência do contexto doméstico e familiar.
A condição de ser mulher e figurar numa posição vulnerabilizada pela violência tem sido paulatinamente entendida como requisito de avaliação judicial sobre o processo, a fim de que o processo de tomada de decisão não se resvale no enquadramento de subsunção frio e típico do fato à norma, mas, sobretudo, entenda a aplicação da norma contextualizada a uma moldura de vida fática que interfere na correta aplicação da tutela jurisdicional.
Para atender essa necessidade de nutrir o processo de tomada de decisão à compreensão do contexto de violência vivido pela mulher, o CNJ recomendou desde 2012 o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instrumento que objetiva a igualdade de gênero em uma sociedade pacífica e inclusiva, formulado em consonância aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 e 16 da Agenda 2030 da ONU. O Protocolo se inspira em instrumentos normativos similares presentes no México, Chile, Bolívia, Colômbia e Uruguai. O propósito do Protocolo é fomentar uma atuação da magistratura que, em suas decisões, atenha-se à condição da parte como integrante de um contexto de vivência em vulnerabilidade pela violência que repercute nas suas ações e respostas aos conflitos e a compele a agir, muitas vezes, mediante coação, submissão e constrangimento de uma força agressiva, resultando em situações que não seriam geradas se estivesse livre da violência.
Apesar de avanços importantes a violência domestica no Brasil continua sendo um desafio complexo, principalmente quando a vitima precisa procurar o judiciário para por fim a relação conjugal através do divórcio ou da união estável, onde se vê obrigada a participar de audiência conciliatória com o seu agressor.
Sabemos da importância dos Princípios Norteadores do Direito de Família, bem como da utilização dos Métodos Alternativos de Solução de Conflitos, estabelecidos no artigo 695 e seguintes do Código de Processo Civil, cujos normativos trazem a audiência de conciliação como circunstância necessária para por fim ao conflito entre as partes e a possibilidade de se chegar a um consenso.
Todavia, em casos que envolvem violência domestica, impor a vitima a sua presença em audiência conciliatória se torna mais uma violação de seus direitos, já que, além da sua ausência poder configurar ato atentatório à dignidade da justiça, punível com a multa do artigo 335, § 8º, do CPC, estará forçada a ficar frente ao seu agressor, em mais um momento sensível que é uma audiência judicial, sujeita a deboche, olhares intimidadores e reavivamento psíquico de traumas sofridos.
A jurisprudência, ao se deparar com o contexto da ruptura do casal envolvendo violência doméstica, tem reconhecido timidamente a inapropriedade da audiência de conciliação.
Frise-se estamos falando da obrigatoriedade da vitima de violência comparecer a audiência de conciliação, quando o seu temor ao agressor, o seu psicológico está abalado, onde a vítima jamais terá condições emocionais de realizar uma composição justa e igualitária. Isso não quer dizer que não se possa haver autocomposição do litígio através dos procuradores das partes, cujo acordo, se obtido, poderá ser trazido aos autos para homologação.
Além do mais a recomendação geral n.° 33 sobre o Acesso de mulheres à Justiça, proferida pelo Comitê sobre a Discriminação contra as Mulheres, da ONU, recomenda em seu item 58, expressamente, que não haja imposição de métodos alternativos de conflitos quando a questão envolver violência contra a mulher.
Colabora ainda com a recomendação, a Convenção de Belém do Pará que reproduz dispositivo que desautoriza o Estado a praticar violência estrutural pelo aparelho judiciário às mulheres vítimas de violência.
Em recente processo de dissolução de união estável envolvendo vítima de violência doméstica, na Comarca de Ilhéus, em que pese constar nos autos desde a petição inicial a narração fática da violência sofrida pela autora, a magistrada, tomando por base friamente o artigo 695 do CPC designou audiência de conciliação. Prontamente solicitado o seu cancelamento com a devida fundamentação, a audiência foi mantida sob fundamento de sua possibilidade na modalidade virtual
Contudo, é importante lembrar que o artigo 695 do CPC não é absoluto e pode o magistrado tendo motivos deixar de aplicar o quando estabelecido do diploma legal.
Não se vislumbrando motivos para se manter uma audiência de conciliação com vitima de violência domestica e diante da negativa do pedido de cancelamento da mesma, fora então interposto Agravo de Instrumento no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia requerendo o efeito suspensivo da decisão a quo. A decisão, inédita na Bahia, proferida em 30 de agosto de 2024, foi favorável a Autora, sob a seguinte conclusão:
Nesse sentido, com base nos documentos carreados aos autos de origem, não obstante o dever ínsito ao magistrado de promover, a qualquer tempo, a conciliação entre as partes, o histórico de violência supra delinado, bem assim a manifestação expressa da recorrente no sentido da impossibilidade da conciliação, apontam para a inviabilidade de conversações produtivas, ao menos por ora, de maneira que a proteção da recorrente deve ser priorizada, na hipótese, afim de evitar-se o aumento de seu sofrimento ou risco à sua segurança.
Face ao exposto, presentes os requisitos do art. 995, Parágrafo único, do Código de Processo Civil, DEFIRO O EFEITO SUSPENSIVO vindicado, a fim de suspender a audiência de conciliação designada para a data de 06/09/2024, às 14h30, determinando o prosseguimento do feito sem referida assentada e sem prejuízo de eventual acordo entre as partes ser apresentado nos autos por escrito, firmado por seus procuradores.
É a primeira decisão do tipo no Estado da Bahia, onde inclusive a Defensoria Pública já havia pedido por um ofício a mudança no TJ/BA[1], sem obter nenhuma resposta ate o momento.
Se torna gratificante a atuação dessas advogadas da causa por conquistar uma decisão que poderá ser uma decisão precedente muito boa para a jurisprudência em geral, visto que antes só tinha precedentes em SP e PR.
Mais acima de tudo é uma decisão protetiva a vitima de violência domestica que poderá contar com um judiciário mais humanista, visto que a manutenção da audiência de conciliação, quando incompatível tal assentada pela violência doméstica vivida pela vitima, e pela antecipada manifestação de ser inviável essa conciliação, viola o direito à integridade e saúde mental da mulher, perpetrando violência secundária e estrutural do Estado em forçar a mulher a ser vista pelo seu agressor e a estar com ele em audiência seja presencial ou virtual, na qual inclusive pode ser instada a falar com o sujeito.
Espera-se que decisões como esta seja um referencial para os juízes de instanciais iniciais, tornando-se habituais o cancelamento da audiência de conciliação quando requerido ou se quer a sua designação, não necessitando a vitima recorrer a instancias superiores.