NÃO RECOLHIMENTO DE IMPOSTO DECLARADO É CRIME?

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BREVE ANÁLISE À LUZ DA RECENTE DECISÃO DO STJ – PARTE 1

Harrison Leite
Advogado. Professor de direito tributário da UFBA e da UESC. Doutor em Direito.

Tem repercutido bastante no mundo jurídico decisão proferida pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do HC 399.109/SC. A decisão diz respeito à criminalização de empresários cujos tributos indiretos (ICMS e IPI, por exemplo) não são repassados à Fazenda Pública dolosamente, quando há sua cobrança “cobrança” do consumidor, também chamado de contribuinte de fato.

Diz-se dolosamente porque, uma coisa é o mero inadimplemento fiscal, ou seja, o não pagamento do tributo por ausência de caixa; outra, inteiramente diversa, é a prática criminosa de se apropriar desses valores para enriquecimento próprio, à custa do erário. Daí a importância de se analisar a situação concreta, pois a defesa do acusado encontra-se principalmente no âmbito fiscal, de modo que o conhecimento das categorias tributárias se torna imprescindível para o entendimento do fato típico.

Bom lembrar que, antes dessa decisão do STJ, existia divergência entre a Sexta e a Quinta Turmas quanto à aplicação do tipo penal. A Sexta Turma entendia que, nos casos de não repasse de ICMS devido em “operações próprias”, estaria configurada situação de inadimplemento fiscal, enquanto no caso de não recolhimento de ICMS em “substituição tributária”, haveria crime de apropriação indébita. A Quinta Turma sustentava que o não repasse do ICMS, qualquer que fosse a operação, já se enquadrava no tipo penal de sonegação, previsto do art. 2º, II da Lei 8.137/90, que possui a seguinte redação: “Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (…) II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

Ora, o não recolhimento de tributos retidos de terceiros, caso da substituição tributária, é crime de apropriação indébita, assunto que não deixava dúvidas. Agora, criminalizar o não pagamento do ICMS ou do IPI de operações próprias, foi inovação jurídica, e que, na prática, poderá incentivar a sonegação e não servir de instrumento de aumento de receita.

Por esta razão, alguns pontos da decisão merecem ser observados.

O primeiro é que, agora, passou a ser crime registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o ICMS e não o pagar. Portanto, como ocorria até antes da decisão, é irrelevante

para a configuração do crime a clandestinidade, a omissão, a vontade deliberada de se apropriar da receita tributária. Basta apenas declarar o tributo e não o pagar, pois aí se configura a presunção de se apropriar de receita estatal, o que está “patente” nas declarações enviadas.

Nesse quesito, o contribuinte sonegador, aquele que nada informa, ou que informa a menor, resta em situação vantajosa se comparado àquele que declara corretamente, quer pagar, mas não tem caixa que permita a operação. O devedor contumaz só será criminalizado se for autuado; o que passa por dificuldades de caixa sequer precisa ser investigado, pois já confessou seu crime nas declarações entregues.

Em segundo lugar, o sujeito que pratica o crime é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, ou seja, aquele que efetivamente cobra ou desconta os valores correspondentes ao tributo. Portanto, aquele que apenas realiza a operação de circulação de mercadoria, no caso do ICMS, ou de industrialização, no caso do IPI, sem o dever de pagar, não está alcançado pela tipificação penal.

Para tanto, importa saber a diferença entre descontar e cobrar, distinção que permite diversas discussões. O desconto do valor é aquele realizado quando há retenção do imposto (substituição tributária), enquanto a cobrança do tributo diz respeito, tanto ao valor embutido no preço da operação repassado ao consumidor (operação própria), quanto àquele calculado para fins de substituição tributária (operação de terceiro).

Por isso, pouco importa quem é o comprador da mercadoria, também chamado de consumidor ou contribuinte de fato do imposto. Quem pode cometer o crime previsto nesta norma é aquele que está obrigado por lei a descontar ou a cobrar o valor referente ao tributo para posterior repasse ao fisco.

O problema agora é que o mero não pagamento tornou-se crime, em clara contradição com entendimento pacificado de que o simples inadimplemento de tributo não atrai qualquer responsabilidade ao sócio da empresa.

A única esperança é que, para a configuração da conduta delituosa, deve haver dolo na apropriação do tributo devido e que deveria ser repassado às fazendas públicas. Esse requisito, extremamente subjetivo, só pode ser extraído dos fatos postos de cada caso a ser analisado e das provas constantes e juntadas ao processo.

Daí a importância dos elementos contábeis na estruturação da defesa do contribuinte acoimado da pecha de sonegador, dado que há diversas razões para o não pagamento de tributos, mormente em casos justificadores da falência. Em momentos de crises financeiras, até o tipo penal é flexibilizado para alcançar êxito nas cobranças tributárias.

Embora o tema tenha sido uniformizado no STJ, ele ainda não é pacífico entre os doutrinadores e no próprio Supremo Tribunal Federal, o que gera controvérsias, insegurança jurídica e problemas incontornáveis aos contribuintes que um dia não puderam pagar os tributos.

Para igualar o cidadão ao Estado, imagine se fosse considerado crime o Estado dever um precatório e não o pagar. Por enquanto, apenas o contribuinte é obrigado a ser adimplente. O Estado… bem, o Leviatã continua indomável

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