O que muda na gestão pública?
Ainda pouco comentada, a Emenda Constitucional n. 100, de 26 de junho de 2019, trouxe radical mudança no tratamento jurídico dado ao orçamento público. Até então, a maioria da doutrina e a unânime jurisprudência eram no sentido de que o orçamento é lei autorizativa e não impositiva. Isso porque é lei que não cria gastos, apenas os autoriza.
Com esse entendimento o Legislativo fixa um teto de gastos, que pode ou não ser observado, conforme a vontade do Executivo. A título de exemplo, a autorização no orçamento para a construção de uma escola, não obriga o Executivo a sua realização, visto que o orçamento não obriga a efetivação das despesas nele previstas. Antes, tão-somente, autoriza que aludida obra seja realizada, cabendo ao Executivo realizá-la ou não. É, portanto, uma lei que autoriza o Estado a efetuar as suas despesas, mas não o obriga. Autoriza, mas não impõe.
Sabendo que pode ou não ser cumprido, o orçamento sempre foi chamado de “lei de ficção”, “lei de meios” e nunca atraiu a população para a fiscalização do seu cumprimento.
No entanto, a EC n. 100/2019 acresceu o § 10 no art. 165 da Constituição Federal, com a seguinte redação: “§ 10. A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”.
Antes dessa redação, duas outras alterações tinham criado uma impositividade no orçamento, mas tão-somente das emendas parlamentares individuais e de bancada. As emendas individuais impositivas advieram com a EC n. 86/2015, que obrigou o Executivo a vincular o percentual de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) do Orçamento da União a esses gastos; e as emendas de bancada de parlamentares de Estado ou do Distrito Federal vieram com a EC n. 100/2019, que vinculou mais 1% da RCL a esses gastos. Agora são 2,2% da RCL da União que são vinculados para os parlamentares e suas emendas. De uma RCL de quase um trilhão de reais, tem-se uma ideia do percentual de emendas vinculadas aos parlamentares, o que mais parece exercício do patrimonialismo na alocação político-eleitoral do que um gasto aderente ao planejamento setorial. Prevaleceu entre eles o entendimento de que, se o orçamento total não pode ser impositivo, deve-se buscar a impositividade possível, qual seja, de parte de suas emendas.
A impositividade parcial do orçamento foi fruto do descaso do Executivo com o Legislativo, pois todas as emendas parlamentares, após aprovadas, precisavam voltar à “mesa de negociação” para serem posteriormente liberadas. Com a impositividade das emendas, pelo menos nesse ponto o Executivo não podia mais recuar, exceto se algum impedimento técnico fosse constatado.
Esse clima de “gastar se quiser” tornou o Executivo um superpoder, fortaleceu o fisiologismo, desvalorizou o Legislativo e impediu de o Judiciário encarar os temas orçamentários com maior seriedade.
Foi nesse cenário que o Legislativo promulgou a EC n. 100/2019, no sentido de que, não apenas as emendas parlamentares individuais e de bancada são impositivas, mas todo o orçamento. Pela nova redação, tornou-se agora norma jurídica expressa o dever de cumprir o orçamento conforme aprovado pelo Legislativo. Consequência lógica é que a natureza jurídica do orçamento passou a ser de lei impositiva, como as demais leis, de sorte que, é bom repetir, a administração tem o dever de “executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”. A discricionariedade do Executivo perdeu espaço para o dever de cumprir a lei mais importante da nação. Agora, o que foi planejado no orçamento deve ser cumprido.
Não se trata de opção, de norma programática, de mera facultatividade. A palavra “dever” não é ambígua ou imprecisa. Por outro lado, sua inserção não foi inútil e claramente não encerra opção no seu cumprimento. Todos os sinônimos que povoam o seu círculo hermenêutico (compromisso, incumbência, obrigação, responsabilidade, encargo) deixam claro que uma responsabilidade foi imputada a alguém e que deve ser cumprida.
Por óbvio, e parece singelo afirmar, essa impositividade requer contextualização com o tema da execução financeira, visto que aplicar um orçamento conforme aprovado requer a convergência de diversos fatores. Portanto, assim como a emenda impositiva não será de execução obrigatória nos casos dos impedimentos de ordem técnica (art. 166, § 13 da CF), com igual razão o orçamento, se houver alguma razão justificadora do seu não cumprimento pelo Executivo. Nenhum problema haverá nessa inexecução, desde que justificada. O dever de contingenciamento é previsto e plenamente aplicável quando presentes os seus requisitos.
Lado outro, importante ressaltar que a Constituição não previu qualquer mecanismo que permita ao Executivo solicitar o “não cumprimento” do orçamento. Significa que a regra é cumpri-lo sempre, sendo a exceção sua não execução, dentro dos critérios lógico-sistemáticos impeditivos de seu cumprimento. No ponto, há elevada necessidade argumentativa de justificar o porquê da não execução das programações orçamentárias.
Até então o Executivo era livre para não cumprir o orçamento ou para contingenciar uma despesa, de modo completamente discricionário. Agora a regra se inverte: seu dever é executar todas as programações constantes do orçamento. Na hipótese de não o fazer, deverá justificar com razões robustas essa não ocorrência. Essa a dinâmica imposta pela EC n. 100/2019.
Importante que os órgãos de fiscalização estejam atentos a eventuais descumprimentos da lei orçamentária, com a lembrança de que atentar contra ela é incorrer claramente em crime de responsabilidade (art. 85, VI da CF). Não é necessária outra norma expressa nesse sentido.
Daí a atenção aqui pontuada: prefeitos e governadores, estejam alertas à execução da lei orçamentária conforme aprovada. O seu descumprimento poderá ensejar, dentre outras consequências, a judicialização das normas ali descritas e crime de responsabilidade. Orçamento agora é lei de verdade e tem de ser cumprido.
Harrison Leite – Professor de Direito Tributário e Financeiro da UFBA e da UESC. Advogado.