A federação brasileira tem sido pouco compreendida pelos Tribunais Superiores em termos de autonomia financeira. Autonomia esta reconhecida pelo art. 18 da Constituição, para quem a organização político-administrativa da República Federativa compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos. É que, sem autonomia, não há federação.
E autonomia, sem dúvida, perpassa pelo aspecto financeiro. Um filho, maior de 18 anos, ainda que possua capacidade civil, não possuirá autonomia na vida se lhe faltarem recursos para esse exercício.
Por esta razão, a Constituição dotou os entes federativos de competências para instituírem e efetivamente cobrarem tributos, para, com esse dinheiro, exercerem a sua autonomia. Aos municípios, no entanto, deixou a cobrança de tributos de pequena representatividade financeira, mas nem por isso desimportantes. Os impostos municipais são apenas IPTU, ISS e ITIV.
O IPTU e o ITIV são impostos diretos, cobrados diretamente do contribuinte, através de um documento de arrecadação externo, e isso dificulta a sua fiscalização. Geralmente expressam pequena receita na realidade municipal. O ISS, por sua vez, é indireto, embutido dentro do preço do serviço, mas de pouca representatividade em municípios menores, dado que são prestados poucos serviços tributáveis. Nesses, a maioria dos serviços são públicos e gratuitos, e por isso não geram receita tributária. Em cidades mais desenvolvidas, no entanto, o setor de serviços é de suma relevância e significa a maior receita própria desse ente da federação.
Não bastasse a dificuldade da pequena receita municipal, em diversos momentos em que o Supremo Tribunal Federal (STF) é chamado a decidir temas que envolvem aludidos tributos, opta por uma decisão que demonstra não se importar com a repercussão dos seus impactos na combalida autonomia municipal.
No auge do crescimento da economia brasileira, em que diversos serviços eram prestados em todo o país por empreiteiras com contratos bilionários, prevalecia a tese no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que a base de cálculo do ISS era o preço total dos serviços, sem possibilidade de dedução de materiais utilizados na construção civil. No entanto, ao julgar o RE 603.497/MG, o STF entendeu pela possibilidade da dedução da base de cálculo do ISS dos materiais empregados na construção civil. As empreiteiras ganharam dos municípios.
Quando chamado a decidir sobre a incidência de ISS nos contratos de locação de bens móveis, entendeu ser inconstitucional essa cobrança, por inexistir serviço na espécie, o que ficou confirmado na Súmula Vinculante 31. As locadoras ganharam dos Municípios.
No caso envolvendo sociedades prestadoras de serviços profissionais (médicos, advogados, engenheiros), se devem pagar ISS sobre o faturamento ou apenas um valor fixo por ano, confirmou a tese de que o valor a ser pago deve ser o fixo, geralmente menor do que um percentual sobre o faturamento (RE 236604). Os prestadores de serviços regulamentados ganharam dos Municípios.
Instado a decidir se o fornecimento de refeições em bares e restaurantes constituía prestação de serviço ou venda de mercadoria, entendeu que tudo seria mercadoria, independente dos serviços envolvidos (REsp 28486/SP e Súmula 163). Os Estados ganharam dos Municípios.
Questionado se as isenções dadas pela União nos impostos que são repartidos, IPI e IR, deveriam sofrer algum limite, o Supremo disse ser constitucional a redução do produto da arrecadação que lastreia o FPM (RE 705423).
Mais recente, quando a LC n. 157/16 tentou dar uniformidade na distribuição do ISS, retirando-o dos grandes centros onde ficam os bancos, empresas de leasing, operadoras de cartões de credito e débito, e planos de saúde, para ser pago no município onde o tomador de serviço reside, o STF suspendeu seus dispositivos relativos ao local de incidência do ISS (ADI 5835). Perderam os municípios pequenos.
Esses exemplos, aos quais inúmeros outros se poderiam somar, prestam-se para demonstrar, ainda numa análise superficial, que o destino das receitas dos municípios por vezes fica sujeito a flutuações jurisprudenciais, não raramente influenciadas por pressões de grandes agentes econômicos, o que só aprofunda a diferença abissal entre os entes federativos, a reclamar, com urgência, revisitação no pacto federativo. O bolo da receita não pode continuar 60% na União, 25% com os Estados e apenas 15% com os Municípios.
Não se está aqui a julgar o erro ou o acerto das decisões, mas apenas a relembrar que a vontade legislativa de corrigir a autonomia financeira dos Municípios, quando modificada por interpretação do Judiciário, deve novamente ser corrigida com alguma outra receita tributária, a fim de se buscar o equilíbrio da federação. Município não é apêndice do governo central. É um ente federativo dotado de igual autonomia.
O Supremo precisa ficar mais próximo dos Municípios. Quem mora no Distrito Federal não mora num município, tampouco num Estado. Mora num ente híbrido que não transmite a noção da exata realidade municipal.