PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO OU EVASÃO FISCAL?
A relação Fisco x Contribuinte, por sua própria natureza, é marcada pelo confronto. Basta analisarmos a história das civilizações e não será difícil concluir que a questão tributária se apresentou como plano de fundo dos principais marcos históricos revolucionários, como na Inglaterra, onde a luta dos barões contra “João Sem Terra” culminou com o advento da Magna Carta Libertatum de 1215; na França, com a Revolução Francesa (1789); nos Estados Unidos, com a Independência das Colônias Americanas (1776); e, entre nós, com a Inconfidência Mineira (1789) e a Conjuração Baiana (1796), provocadas pelo aumento da derrama por parte da metrópole.
O confronto é natural e ínsito na relação tributária. De um lado, o contribuinte tende a ver o tributo como uma interferência estatal em seu patrimônio. De outro, o tributo representa um pilar fundamental para o funcionamento do Estado, o qual, com o passar da história, abarcou inúmeras outras funções anteriormente impensadas, de forma que hoje, além das funções clássicas de defesa interna e externa da nação e organização de um sistema de julgamentos dos infratores da norma, se evidenciam funções políticas, sociais e econômicas.
O tributo está, assim, no meio termo entre a liberdade do contribuinte em organizar seus negócios e seu patrimônio e a necessidade cada vez maior do Estado em arrecadar. É neste espaço, na chamada zona cinquenta, que surge o planejamento tributário.
Em sua criatividade, o homem busca maneiras de contornar a regra de incidência tributária, e evitar, assim, a mão pesada do Estado. Assim, o planejamento tributário, tendo por objetivo final a não incidência da norma ou a redução da obrigação tributária, se voltará para a não ocorrência ou redução de um dos critérios que faz parte da regra matriz de incidência.
A grande questão reside em identificar até que ponto tais medidas podem ser consideradas planejamento tributário e não sonegação fiscal.
Nesse cenário, no Brasil, prática bastante aceita e difundida no mundo dos negócios, com vistas a reduzir a carga tributária incidente sobre a folha de salários, é a pejotização, até então considerada prática de planejamento tributário lícito.
É que há uma carga tributária considerável sobre a relação de emprego. Trata-se da contribuição previdenciária sobre a folha de salários, prevista no artigo 22, I, da Lei 8.212/91, que incide sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho.
Para compreender melhor a sua incidência, a Consolidação das Leis do Trabalho, no art. 3º, define empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário (de onde se extraem os requisitos para reconhecimento do vínculo empregatício: a) pessoalidade; b) não eventualidade; c) subordinação; d) onerosidade).
Portanto, havendo prestação de serviços de natureza pessoal, com os requisitos acima, configurada está a relação de trabalho, a incidir a contribuição previdenciária elevadíssima, tanto sobre o empregado, quanto sobre o contratante.
Ocorre que, se os serviços prestados forem de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, o artigo 129 da Lei 11.196/05 possibilitou a sua prestação por pessoas jurídicas, para
fins fiscais e previdenciários. Assim, criou-se legalmente uma possibilidade de prestação de serviços personalíssimos por pessoa jurídica desde que tais serviços fossem de natureza científica, artística ou cultural.
Essa forma de prestação de serviços representa considerável redução da carga tributária, configurando-se em planejamento utilizado por diversas pessoas que preenchem os seus requisitos.
Com a Reforma Trabalhista, levada a efeito com a Lei 13.467/17, foram empreendidas diversas alterações no que tange a terceirização, que passou a ser considerada a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução, permitindo-se, inclusive a transferência da execução da atividade-fim.
Valendo-se dos aludidos dispositivos, mesmo antes da ampliação do conceito de terceirização, prática comum em empresas de ramos artísticos e culturais, como clubes desportivos e emissoras de televisão, para além da atividade médica, é a contratação de pessoa jurídica formada por aqueles que irão exercer suas atividades fins, tais quais jogadores e técnicos de futebol, atores e apresentadores de televisão.
Ocorre que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, recentemente, tem decidido pela incidência de contribuição previdenciária sobre valores pagos às pessoas jurídicas nesses casos, quando presentes os requisitos do vínculo empregatício.
Com esse fundamento, por meio do Acórdão 2402-007.31, julgado em 12/3/2019, o CARF, por maioria, decidiu pelo não provimento de recurso voluntário interposto pela TV GLOBO (GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S/A), mantendo auto de infração no valor de R$ 270 milhões relativo a contribuições previdenciárias devidas na contratação de artistas, apresentadores e demais funcionários através de pessoa jurídica interposta.
Na ocasião, salientou o conselheiro relator:
Dessa forma, uma vez que a Recorrente efetuou a contratação de empregados travestida na forma de contratação de pessoas jurídicas, dissimulou contratos de emprego mediante a simulação de contratos com pessoas jurídicas, e assim procedeu, sem sombra de dúvida, com o fim de reduzir obrigações tributárias e trabalhistas. Não há outra leitura. Cabendo destacar, ainda, que a parte final do art. 129, da Lei 11.196/052, repudia o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, situação essa muito presente no caso em análise. E nem se diga que a Recorrente desconhecida os óbices legais para as contratações efetuadas, pois, além da ordem jurídica não admitir tal desconhecimento, certamente a Recorrente dispõe de uma assessoria jurídica bastante robusta. Portanto, cristalina está a prática de planejamento tributário evasivo, voltado a evitar, ilicitamente, a ocorrência do fato gerador, mediante fraude, dissimulação e simulação, o que também atrai a regra do art. 173, inciso I, do CTN. (grifos nossos)
Desse modo, resta evidente uma tendência do CARF em reconhecer a incidência da contribuição previdenciária sobre a folha quando comprovados os requisitos caracterizadores do vínculo empregatício, ainda que a contratação se dê por interposta pessoa jurídica a título de terceirização, afastando, pois, a hipótese de planejamento tributário lícito.
A questão ainda reclama por uma palavra final do judiciário, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, a fim de dar a correta interpretação do art. 129 da Lei n. 11.196/05, dada a sua permissão a contratos dessa natureza. Por outro lado, as empresas, em seus planejamentos tributários, devem estar atentas aos riscos que acompanham a terceirização de serviços. Afinal, nesse eterno duelo Fazenda x contribuinte, o Fisco tem se mostrado um excelente pugilista.
Gustavo Niella, é advogado no Harrison Leite Advogados Associados, assessor da Procuradoria-Geral do Município de Ilhéus-BA, pós-graduando em Direito Constitucional e Direito Administrativo e Pós-Graduando em Direito Corporativo e Compliance pela Escola Paulista de Direito