Crônica de uma crise anunciada

No dia 19 de dezembro de 2018, o presidente da República por um dia, Deputado Rodrigo Maia, sancionou a lei que flexibilizou as restrições para os Municípios que extrapolarem os gastos com pessoal. Trata-se da Lei Complementar n. 164, que alterou a Lei de Responsabilidade Fiscal, e suspendeu as penalidades impostas aos municípios que ultrapassem o limite de 54% da Receita Corrente Líquida com gastos de pessoal.

Aponte-se que a inobservância desse limite tem sido a maior causa de rejeição das contas municipais pelos órgãos de controle, no caso, os Tribunais de Contas.

Até então, ultrapassado o limite de 54% num quadrimestre, o Município tem dois quadrimestres para reduzir essas despesas ao limite, sendo que o não cumprimento impede o ente federativo de (i) receber transferências voluntárias; (ii) obter garantias de outro ente e (iii) realizar empréstimos, exceto para providências alusivas à redução das despesas com pessoal.

Com a nova lei, as três restrições acima não se aplicam ao Município, desde que haja queda de receita real superior a 10%, em comparação ao correspondente quadrimestre do exercício financeiro anterior, devido a (i) diminuição das transferências recebidas do Fundo de Participação dos Municípios decorrente de concessão de isenções tributárias pela União e (ii) diminuição das receitas recebidas de royalties e participações especiais.

Além de comprovar a redução da receita em 10%, oriunda das causas acima, o gestor também deverá provar que a despesa do quadrimestre vigente não ultrapassa o percentual de 54%, considerado, para este cálculo, a Receita Corrente Líquida do ano anterior atualizada monetariamente.

A lei não é “mil maravilhas”, como alguns estão pintando, e poucos municípios se adequarão aos requisitos cumulativos, que são três e vale a pena repetir: (i) redução da receita superior a 10%, em comparação ao correspondente quadrimestre do exercício financeiro anterior; (ii) a causa da redução deve se dar em decorrência, ou de isenções tributárias concedidas pela União, ou de diminuição da receita de royalties; e (iii) a despesa do quadrimestre analisado deve estar dentro dos limites, se observada a receita corrente líquida do ano anterior devidamente atualizada.

Muito criticado pela mídia, no sentido de flexibilização dos gastos municipais, ou de tolerância com irresponsabilidade fiscal, a lei aprovada, no entanto, nos chama atenção para um tema caro no discurso político: a análise das reais causas do elevado índice de gasto de pessoal, o custo desse gasto para o crescimento econômico do país e as propostas de solução do problema.

É certo que, diante do problema, o legislador prontamente se ergue para uma solução, mas esta deveria ser eficiente e duradoura, e não transitória, de curto prazo. Deveria atacar as causas e não transferir para outrem as responsabilidades.

Ora, receita de royalties, por ser temporária, nunca poderia ser aplicada em gasto de pessoal, e a lei expressamente o proíbe. Portanto, se cumprida a lei no nascedouro, a atual alteração, nesse ponto, não seria necessária. Igualmente, no atual cenário de crise, dificilmente a União dará benefícios fiscais no Imposto de Renda e no Imposto de Produtos Industrializados capazes de afetar drasticamente a perda de receita no importe de 10%.

Mas, e o real problema de gastos de pessoal, quando será enfrentado? Um país em que 14 Estados ultrapassaram os limites de gastos com pessoal em 2017, em que a União toma empréstimo de mais de R$ 150 bilhões para gastos com despesas primárias em 2018, aí incluindo pessoal, e em que um terço dos municípios não gera receita nem para pagar salário de prefeito, nos questionamos se será necessário esperar a crise piorar para se pensar em soluções.

No livro “Crônica de uma morte anunciada”, escrito por Gabriel García Marquez, todo mundo sabia que Santiago Nasar iria morrer, mas nada foi feito de concreto para proteger a vítima ou impedir os algozes. Todos deixavam para uma outra pessoa agir, até porque sempre havia a possibilidade de o pior não acontecer. Mas Santiago foi morto.

A crise fiscal está sendo anunciada há um bom tempo, desde 2009. Todos sabemos, mas fingimos desconhecer. Conhecemos as suas causas, mas deixamos sempre para  outro resolver o problema. Esquecemos que ele pode nos atingir.

Buscamos um culpado: ora é a receita que cai, ora é o valor dos royalties que diminui, ora é a política econômica interna ou externa. E nunca atacamos o gasto que persegue todas as gestões. E quando se propõe solução, o Supremo Tribunal Federal, que não sabe o que é crise financeira, dá a última palavra: as despesas de pessoal, além de imexíveis, podem inclusive ser majoradas.

Na crise anunciada e que atinge a todos nós, apenas de uma coisa devemos estar certos: a responsabilidade não é apenas do outro, é nossa também. E, em tempos como esse, a flexibilização não é a melhor solução. Santiago Nasar vai ser morto. Que o digam os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

O momento é de aprimorar a eficiência no gasto público, mormente na área de pessoal, com redução dos seus custos. Para tanto, o art. 169 da Constituição Federal apresenta três soluções: (i) redução de gastos cargos em comissão e funções de confiança; (ii) exoneração de servidores não estáveis e (iii) exoneração de servidores estáveis.

Sem entrar em detalhes no procedimento para esta redução e nos seus requisitos, outros estudos podem ser feitos: (i) elaboração ou revisão de planos de carreira que realmente avaliem e valorizem a qualidade do serviço público prestado; (ii) avaliações periódicas do trabalho desenvolvido pelo servidor, para evitar progressões automáticas; (iii) análise dos acréscimos pecuniários concedidos, para que não sejam computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores (art. 37, XIV da Constituição Federal); (iv) estudo das hipóteses de vacância do cargo, que incluem a aposentadoria, dado que o Regime Geral de Previdência Social é o Regime do Município quando não há regime próprio; (v) limitações de ganhos com tetos razoáveis; (vi) incentivos a planos de demissão voluntária; (vii) auditorias em folha, para evitar acumulação proibida em lei e retirar acréscimos sem previsão legal; (viii) retorno à carga horária aprovada em concurso, quando diminuída no passado, como forma de evitar novas contratações; (ix) análise do impacto financeiro-orçamentário na concessão de qualquer despesa de natureza continuada, nos termos do art. 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal; e (x) estudo dos encargos que incidem sobre a folha, pois alguns deles são computados erroneamente, como se dá com a base de cálculo (salário de contribuição) para fins de pagamento do INSS patronal e a correta alíquota do Seguro Acidente de Trabalho (SAT).

Sem estudo sério dessa despesa, os gestores tendem a se preocupar mais com folha de pagamento do que com planejamento e realização de políticas públicas. E quando esse é o foco, não se faz política.

É chegada a hora de resolvermos esse problema e tal se dará através de instrumentos elaborados por estadistas, através da política. Sem essa solução surgirão desânimo e a sensação de que os problemas são insolúveis,  afastando os gestores atuais da nobre missão e inibirão novos nomes no cenário nacional.

Harrison Leite